África
Microcrédito ao serviço da Paz
«Oficialmente as utopias estão mortas, mas a realidade que as alimentou e justificou durante séculos continua bem viva”.
Considerado um instrumento de luta contra a pobreza, o microcrédito tem desempenhado um papel fundamental na criação de emprego e na eliminação da exclusão. Denominado como potenciador de inclusão, é actualmente uma filosofia de vida para todos aqueles que querem mudar de vida.
Negócio a Excluídos
“O acesso ao crédito é um direito humano básico”. A frase, do mesmo criador do microcrédito – Muhammad Yunus -, não poderia ser mais simples e directa. Disseminar esta ideia é que se tem revelado um desafio mundial pela desconfiança que gera as pessoas a que se destina – os pobres. Um discurso renegado vezes sem conta pelo seu fundador que defende em detrimento da pobreza o empreendedorismo, uma característica a seu ver subjacente a qualquer ser humano independente da sua condição social. Um espírito que não está limitado a um grupo de pessoas ou países, mas que é fundamento de todos porque como diz “todos somos uma espécie empreendedora”. E é esta razão de ser que movimenta a economia, num ciclo incessante pelo poder de repelir o supérfluo no presente, com o fim de assegurar um bem futuro, procurando constantemente combater uma das desvantagens do capitalismo: a desigual distribuição da riqueza. Para Yunnus importa destacar que o microcrédito valoriza a capacidade de iniciativa na criação de condições de crescimento de pequenos negócios, permitindo a plena inserção no mundo do trabalho de pessoas pobres. Razão pela qual o papel do Estado é fundamental no sentido de viabilizar as condições necessárias para a efectiva eliminação da exclusão social e não apenas para a sua amenização. A geração de riqueza e a sua adequada distribuição deve ser um dos objectivos das políticas públicas.
Por uma economia de comunhão
O microcrédito induz ao desenvolvimento, pois contribui não só para gerar emprego e renda, mas também para elevar a auto-estima da população. Com taxas de juros abaixo das que normalmente o mercado oferece, trata-se de um sistema de garantia bastante mais acessível, que procura contrariar as profundas desigualdades de distribuição da riqueza existentes na sociedade moderna. De proporções verdadeiramente alarmantes, o número de pobres não pára de crescer e já chega a 307 milhões de pessoas em todo o Mundo. De acordo com a ONU, o dado mais preocupante é a tendência de que esse número aumente até 2015, quando os países menos desenvolvidos poderão passar a ter 420 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza. Em algumas regiões, principalmente na África, parte da população já tem um consumo diário de apenas 57 centavos de dólares, enquanto, por exemplo, um cidadão suiço gasta por dia 61,9 dólares. Nos anos 70, cerca de 56 por cento da população africana vivia com menos de um dólar, hoje este valor é de 65 por cento. As ajudas dos países mais ricos aos mais pobres continuam a ser uma gota de água no Oceano, cifrando-se nos 0,22 por cento do seu PIB. No entanto, é ainda mais grave os subsídios que atribuem às suas empresas para exportarem e as barreiras comerciais que erguem aos produtos oriundos dos países mais pobres. O desiquilíbrio dos meios sufoca completamente as economias mais pobres e parece que o mundo continua impávido a assistir e persistir nestas diferenças. Desigualdades que fazem aumentar o número de pessoas que passa fome. Calcula-se que 815 milhões, em todo mundo sejam vítimas de subnutrição crónica ou grave, a maioria das quais são mulheres e crianças em vias de desenvolvimento. Este flagelo atinge 777 milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, 27 milhões nos países em transição (na ex-União Soviética) e 11 milhões nos países desenvolvidos. Números que o microcrédito ajuda a diminuir porque permite as estas pessoas criarem o seu próprio emprego, tendo mecanismos de subsistência económica ao seu serviço que lhes possibilita fugir a esta calamidade.
O modelo africano
Pouco mais de 12 milhões de pessoas beneficiaram até ao momento de programas de microcrédito em toda a África. É certo que os números não param de aumentar, mas confirmam uma projecção ainda insuficiente para um continente que conta com mais de 800 milhões de habitantes, tem cerca de 50 por cento da população a viver com menos de um euro por dia, depende fortemente das ajudas dos doadores e dos investidores internacionais e é, em absoluto, o mais endividado, ostentando 11 por cento da dívida mundial e tendo apenas cinco por cento do Produto Interno Bruto global. Razões que fazem com que o continente africano tenha sido nos últimos 30 anos um espaço de aplicação de muitos modelos de cooperação e apoio ao desenvolvimento. Acções muitas vezes gratuitas, que assentam frequentemente em processos de doação escassamente eficazes, incapazes de estimular processos reais e vigorosos nas economias de cada um dos países, tanto a nível macro, como microeconómico e, sobretudo, quase nunca capazes de se reflectirem positivamente no nível de vida das comunidades de base locais. E é neste contexto que o microcrédito representa uma alternativa e uma esperança exactamente pela sua capacidade, em relação a outras formas de colaboração, de atingir directamente as faixas mais pobres da população, promovendo e reforçando de forma duradoura a economia comunitária. Por este motivo é que também as experiências de microfinança (conceito que envolve tanto o aspecto do crédito como, por vezes, o da poupança) se encontram em África há, pelo menos, duas décadas, tendo sofrido, nos últimos anos, uma evolução significativa graças, sobretudo, à experiência adquirida, à melhoria das condições de acesso aos serviços financeiros, à importante acção dos lobbies em relação aos governos na adopção de instrumentos legislativos adequados ao acesso ao crédito por parte das faixas mais débeis e à criação de redes nacionais, regionais e continentais de agentes de microfinança.
Passos importantes que, muitas vezes, esbarram no obstáculo que a ambiguidade existente entre microfinança e microcrédito suscita e que torna fundamental a existência de processos de esclarecimento. Isto porque a verdade é que estas duas definições frequentemente se sobrepõem anulando as diferenças: enquanto a microfinança compreende tanto os serviços de crédito, como os de poupança, o microcrédito limita a sua oferta unicamente à concessão de empréstimos. Por tudo isto, embora exista uma grande variedade de experiências em África, o elemento que distingue os projectos como um dos mais significativos é exactamente o da poupança. Tanto a nível macroeconómico, como de cada comunidade, o crescimento económico insuficiente do continente encontra-se estreitamente ligado à escassa capacidade de acumulação de capital. A ausência de recursos a investir no desenvolvimento de actividades produtivas e as inultrapassáveis dificuldades em enfrentar situações de emergência torna difícil a melhoria da qualidade de vida. Razões que alertam para a necessidade de existir uma poupança privada que impeça a perpetuação de uma forte dependência económica. Hoje mais do que nunca se sabe que a promoção e o incremento da poupança é uma acção a fomentar para um desenvolvimento autêntico e duradouro das comunidades africanas.
O microcrédito tem sido um instrumento de intervenção patrocinado directamente pelo Banco Mundial (BM). Um papel que adquire, muitas vezes, uma função de compensação das medidas de reajustamento estrutural impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Esta instituição tem realizado incontáveis acções para convencer os diversos líderes mundiais sobre a importância de remoção das principais fontes de privação da liberdade: a pobreza e a tirania, a carência de oportunidades económicas e a destituição social sistemática, a negligência dos serviços públicos e a intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. Nesse sentido, o BM dedicou-se ao microcrédito por este ser um dos mecanismos de financiamento do empreendedorismo para os excluídos. Um instrumento de “ataque à pobreza”, que também dá lucro, pois a taxa de inadimplência ( taxa de não pagamento até à data de vencimento de um compromisso financeiro com outrem) é baixíssima, compensando as taxas de juros diferenciadas. Os créditos são garantidos por um seguro, mas a razão apontada para a baixa inadimplência é o sistema criado para a concessão do crédito. Trata-se de um crédito solidário, ou seja, os tomadores de empréstimo, geralmente pessoas muito pobres, que pedem valores entre os 50 USD e 500 USD, só podem efectuar o negócio com o aval de um grupo de fiadores, sendo os financiamentos concedidos a grupos solidários de cinco pessoas, que se tornam automaticamente accionistas do banco. Esse grupo, que faz parte de um grupo maior garante o empréstimo como um todo. Assim, se um dentro do grupo não pagar, os demais são responsáveis pelo pagamento, e assim por diante. O sucesso deste sistema tem atraído a atenção mundial e até os bancos comerciais de peso internacional começam a interessar-se pela ideia. O facto é que o fruto do trabalho começado no Bangladesh serve hoje de espelho para muitas acções mundiais de combate à pobreza e promoção do desenvolvimento.
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